

Tributação e novas tecnologias
Implicações econômicas, sociais e tributários das novas tecnológias
O avanço das novas tecnologias tem movimentado o debate jurídico quanto a necessidade de novas regulamentações, novas bases de tributação, criação de conceitos específicos (ou ampliação daqueles já existentes), e dificuldades de rastreabilidade de operações e identificação das partes envolvidas.
Apesar de na história da sociedade, sobretudo após a Revolução Industrial, constar diversos episódios de mudanças sociais extraordinárias a partir da tecnologia, o momento atual demanda maior cuidado. Antes a tecnologia caminhava devagar, afetando um ou outro setor da economia, atingindo um ou dois postos de trabalho, ou com início mais pujante em determinado país ou região, enfim, o desenvolvimento era paulatino e havia possibilidade de se valer da experiência de um povo para preparar o terreno jurídico de outro.
O momento atual é mais diversificado e ágil. uma tecnologia desenvolvida a partir da internet, em qualquer parte do mundo, tem força suficiente para atingir boa parte do planeta em poucas horas. A criação de aplicativos que vendem facilidades, acessos a conteúdos diversos, entregas rápidas, transações diretas entre pessoas físicas, meios de pagamentos não formais etc.; são difundidos rapidamente, dificultando o preparo da base jurídica e do mercado.
As dificuldades encontradas são de ordens distintas e envolvem o cenário político, social, econômico e jurídico. O ponto central é que todos esses cenários são sensíveis e dependem de tempo razoável de amadurecimento do debate. Enquanto isso, as inovações propagam efeitos sem qualquer regulamentação, provocando, por um lado, o crescimento de mercado paralelo sem qualquer regulamentação e, de outro lado, reduz a importância do mercado tradicional.
É claro que a tecnologia traz benefícios fantásticos ao dia a dia. Ela aproxima pessoas e tem o poder de conceder acesso isonômico a conteúdos e serviços antes disponíveis a pequena parcela da população mundial. Além disso, auxilia na realização de políticas públicas, no desenvolvimento de estudos e programas de saúde, pode ser bastante eficiente no combate a crimes 1 e ainda melhora o ambiente das transações econômicas.
Mas é preciso pensar no impacto das novas tecnologias diante da realidade local. Em abril de 2018, o IBGE divulgou os resultados da PNAD contínua 2012-2016, que identifica a distribuição de riqueza no Brasil. De acordo com a publicação, 52 milhões de brasileiros estão abaixo da linha pobreza, ou seja, pessoas que sobrevivem com menos de 5,50 dólares por dia, o que equivale a, mais ou menos, R$ 400,00 por mês.
Mas o cenário pode ser ainda pior. O Estadão publicou estudo de economistas da Tendências Consultoria 3 – um tipo de PNAD “ajustada” –, formulado com dados gerais das declarações de imposto de renda pessoa física e ajustes no questionário de pesquisa de acordo com os níveis de classes sociais. Com esse levantamento, a projeção da desigualdade social foi, simplesmente, o dobro do resultado da PNAD. Enquanto na pesquisa oficial do IBGE a classe A abocanhou em 2016 14,9% da renda total nacional, pelo levantamento da Tendências, a classe A ficou com 38% de toda a renda produzida no País no ano de 2016.
Esses dados chamam atenção para a realidade das classes sociais e o número alarmante de pessoas que estão na base da pirâmide social. E o pior é a relação desses dados com o avanço tecnológico, tendo em vista ser a base da pirâmide a mais afetada pelas alterações no mercado de trabalho e na economia.
A Oxford University publicou gráfico com as profissões que guardam maior risco de perda de postos de trabalho. Dentre elas, constam motoristas / taxistas, seguranças, atendentes, cozinheiros, oficiais de empréstimo, de seguros, paralegais, advogados, jornalistas etc. Apesar da pesquisa ter sido realizada com base no mercado norte-americano, é possível identificar a tendência de risco aos postos de trabalho ocupados ao equivalente às classes C e D no Brasil. Com exceção das profissões jurídicas e do mercado financeiro, as demais estão comumente na base da pirâmide social.
Transportando esses dados para a realidade brasileira, certamente se incluiria cobradores de ônibus, porteiros, garis, caixas de supermercados e lojas em geral, bancários, operários da construção civil, metalúrgicos, motoboys, lavadores de veículos, faxineiras, trabalhadores rurais…
Ao imaginarmos a posição ocupada no mercado de trabalho pelas pessoas pertencentes às classes C e D 5 e considerando que tais classes são mais da metade da população nacional, não dá sequer para prever como será a transição do mercado tradicional para o mercado digital.
De fato, ainda não é mensurável a quantidade de postos de trabalho que podem ser abertos a partir tecnologia. Mas também não se sabe onde esses postos de trabalho estarão disponíveis. E para piorar, serão cargos técnicos, que exigem capacitação cada vez mais específica. Antes se falava em profissional de TI. Hoje se fala em especialista em armazenamento na nuvem ou, ainda, em especialista em criação de aplicativos para iOS, dentre outras especialidades bastante delimitadas.
Embora a capacitação em TI não seja completamente indisponível para as classes mais baixas, necessita de um mínimo de nível escolar, muitas vezes não visto em profissionais de baixa qualificação. Considerando o cenário Brasil, estamos falando de uma sociedade em fase de envelhecimento, ou seja, de pessoas acima da meia idade, muitas delas semianalfabetas. Não se trata apenas de ter acesso ao estudo e sim de ser improvável a volta desse público aos bancos escolares para, primeiramente, serem alfabetizados e, após essa fase, capacitados para uma nova profissão.
Em meio à discussão da necessária reforma da previdência, temos um cenário que resulta em aumento do custo social e diminuição da base tributável, considerando os fatos tributários hoje vigentes.
Por exemplo, uma população sem capacitação suficiente e o avanço das atividades realizadas por robôs, provavelmente provocará maior dependência da sociedade em relação aos serviços públicos e previdência social e, ao mesmo tempo, criará dificuldade na arrecadação tributária diante da redução da folha de pagamento, redução da transferência de riqueza, diminuição de serviços etc.
Ao tratar de impactos econômicos do uso de robôs, a consultoria McKinsey estima que a automação de postos de trabalhos poderá resultar em economia de US$ 16 trilhões em salários. Foram por razões como essa que Bill Gates, em vídeo gravado para aQuartz, defendeu a necessidade de tributação sobre robôs. E parece não haver outra saída nos próximos anos. Os sistemas tributários precisarão passar por reforma substancial para alcançar novas bases tributáveis.
A velha discussão se isso é serviço ou se aquilo é mercadoria, se é competência do estado ou do município, darão lugar a novos instrumentos e conceitos. A atualização das hipóteses de incidência, implementação de novas bases tributáveis e definição de critérios para a fixação do local de incidência é o mínimo que se pode esperar para, ao menos, equilibrar o esperado aumento do custo social com os níveis de arrecadação.
Por enquanto estamos no famoso jeitinho para encaixar streaming no conceito de serviços, software por download como mercadoria, tributando ganho de capital em moedas virtuais e por aí vai. União, estados e municípios estão procurando a melhor divisão do bolo, mas a receita de um grande acordo entre os Entes Federados não será suficiente para alcançar todas as atividades econômicas virtuais exploradas no território brasileiro.
O critério da presença econômica apresentado em proposta de alteração legislativa pela União Europeia é interessante por possibilitar alcançar diversas atividades da economia digital. Como a maioria das operações na economia digital são gerenciadas por empresas estrangeiras, o fisco poderá se valer de aspectos objetivos atrelados ao faturamento e à demanda para fixar o local da incidência tributária e participar da riqueza gerada pela empresa estrangeira em seu território. Nada obsta, também, de fixar critérios que preservem os negócios nacionais que ainda estiverem em fase de maturação.
Dentre tantas dúvidas que ainda pairam sobre a regulamentação e tributação das novas tecnologias, a presença econômica se apresenta como ferramenta interessante de política fiscal, uma vez não deixar de tributar a empresa estrangeira que tenha negócios virtuais no Brasil, sem a necessidade de prejudicar o pequeno empreendimento nacional.
Mas o ponto fundamental é a alteração legislativa. O conflito velado entre os entes federados traz insegurança para o ambiente econômico e prejudica ainda mais os novos negócios.
De outro lado, o esvaziamento das bases tributáveis sem novas hipóteses de incidência criará desequilíbrio insustentável nas contas públicas. Sendo o Brasil um país massivamente de pobres, o papel da tributação deve ser eficiente para prolongar a vida de alguns mercados tradicionais e incrementar a arrecadação mediante os novos
negócios enquanto se prepara para o aumento do custo social.
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1 Embora a tecnologia também possibilite outros caminhos para a prática de delitos, à exemplo da
discussão em torno do sigilo das transações com moedas virtuais. Mas não há dúvidas do papel da
tecnologia em investigações policiais, com resultados certamente superiores às novas possibilidades
delitivas.
2 Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=downloads
3 Disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,desigualdade-no-brasil-e-o-dobro-da-oficial,70002267741
4 Disponível em https://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/The_Future_of_Employment.pdf
5 Deixa-se de mencionar a classe E por, normalmente, estarem submetidos a situações informais ainda
mais degradantes. Essas pessoas sequer têm acesso a saneamento básico. Vivem em situação desumana e
já estão marginalizados em relação ao mercado digital.
6 Disponível em https://www.mckinsey.com/featured-insights/digital-disruption/harnessing-automation-for-a-future-that-works.
7 Disponível em https://qz.com/911968/bill-gates-the-robot-that-takes-your-job-should-pay-taxes/